INCLUSÃO Das esferas federal à municipal, representatividade das pessoas com deficiência na política nacional permanece baixa. Mas não falta empenho para mudar esse quadro.

RAFAEL Celestrin tinha apenas 13 anos quando perdeu completamente a visão. Portador de uma doença hereditária rara, o curitibano cresceu em um mundo pouco amigável às pessoas cegas. Apesar de todos os desafios enfrentados por quem, como ele, faz parte do minoritário e amiúde esquecido grupo das pessoas com deficiência, formou-se, fez pós-graduação, casou-se e tornou-se professor concursado da sala de recursos da rede municipal de Pato Branco (PR). Em 2016, decidiu tentar fazer parte de um grupo ainda mais seleto: o de pessoas com deficiência que atuam politicamente. Na primeira tentativa, não obteve sucesso. Mas nas eleições municipais do ano passado, aos 31 anos, tornou-se o primeiro vereador cego da história da pequena cidade paranaense.

“A classe de pessoas com deficiência precisa de representantes em todas as esferas da sociedade. No legislativo não é diferente. Quem melhor para falar sobre acessibilidade, inclusão e exclusão do que  quem realmente sofre isso na pele diariamente?”, argumenta o vereador eleito, cuja esposa, Patrícia, e os filhos Hérick, 9 anos, e Arthur, 6, também são cegos.

Graduado em Análise e Desenvolvimento de Sistemas e detentor de três títulos de pós-graduação – entre os quais um MBA em Gestão Estratégica em Sistemas da Informação –, Celestrin está atualmente concluindo uma segunda faculdade, desta vez de pedagogia. “Vejo que, como professor, consigo realizar um trabalho muito significativo com as famílias. Sendo vereador, as portas se abrem para um maior leque de pessoas que podem ser atendidas por políticas públicas”, afirma o político debutante. 

Celestrin foi um dos 6.592 candidatos que afirmaram ter alguma deficiência ao se registrarem para as eleições municipais de 2020, número que representa 1,2% do total. Essa foi a primeira vez que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) incluiu a autodeclaração de deficiência, de caráter facultativo, no processo de formalização das candidaturas.

Quanto aos eleitos com deficiência, não havia informações oficiais até o fechamento desta edição. No entanto, segundo levantamento realizado pela Revista Nacional de Reabilitação (Reação), especializada no assunto, ao menos 33 pessoas com deficiência assumiram a vereança em câmaras municipais de todo o Brasil neste início de ano (as informações foram checadas pela reportagem de Cidade Nova). Além disso, dois prefeitos eleitos são cadeirantes: Wander Saraiva, que assumiu a prefeitura de Abadia de Goiás (GO), e Odair do Odélio, reeleito prefeito de Bom Jardim de Goiás (GO).

 

BAIXA REPRESENTATIVIDADE

De acordo com o último censo, publicado em 2010, cerca de 45,6 milhões de brasileiros, ou 24% da população, declararam ter alguma limitação mental ou dificuldades para enxergar, ouvir e/ou caminhar. Até três anos atrás, qualquer grau de dificuldade em uma dessas atividades bastava para incluir alguém no rol das pessoas com deficiência. No entanto, a partir de 2018, o IBGE passou a considerar portadores de deficiência apenas as pessoas que relataram dificuldade grande ou incapacidade total para realizá-las. Também entram na conta as pessoas com deficiência mental. 

Esse novo recorte foi estabelecido a partir de critérios propostos pelo Grupo de Washington para Estatísticas sobre Pessoas com Deficiência, da ONU. Assim, as informações oficiais mais atualizadas dão conta de que são 12,7 milhões os brasileiros com deficiência, ou seja, 6,7% da população. O número é muito próximo do obtido pela Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, que identificou 12,4 milhões de pessoas nessas condições.

Independentemente do critério adotado, a representatividade das pessoas com deficiência na política brasileira permanece proporcionalmente baixa. Em âmbito nacional, são apenas três os políticos com mandato em exercício: os deputados federais Felipe Rigoni (PSB-ES) e Paulo Ganime (NOVO-RJ) e a senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP). 

Na esfera municipal, os 33 vereadores já mencionados representam 0,057% do total - 57.600 eleitos em todo o país -, proporção calculada com base no levantamento da revista especializada Reação, uma vez que os atuais bancos de dados do TSE, consultados por Cidade Nova, não disponibilizam informações sobre a condição física dos candidatos eleitos. 

Para Amaury de Sousa Filho, 64, vereador cego eleito pela quinta vez consecutiva em Belém (PA), é necessário reverter esse quadro: “penso que a participação das pessoas com deficiência é muito importante, porque permite elaborar e executar todos os nossos anseios e necessidades. Hoje, nós temos um slogan que diz: ‘nada sobre nós sem nós’. As questões atinentes à pessoa com deficiência não podem ser discutidas sem a própria participação da pessoa com deficiência”. 

O vereador belenense é conhecido como Amaury da APPD, em referência à Associação Paraense das Pessoas com Deficiência, entidade da qual foi sócio-fundador e presidente. Sociólogo e militante dos direitos humanos desde a década de 1980, ele afirma que, desde então, houve grandes avanços no sentido de dar visibilidade às demandas das pessoas com deficiência, algumas das quais se transformaram em políticas públicas. No entanto, pondera, ainda há um longo caminho a percorrer para torná-las efetivas, além de superar o preconceito e a discriminação.

“Temos sonhos maiores, de construirmos uma cidade que não seja excludente, que possa nos acolher, que possa ter a pessoa com deficiência e os seus filhos como parte integrante da sociedade”, afirma Amaury.

Em Pato Branco (PR), segundo Rafael Celestrin, tudo está por fazer: “Atualmente, Pato Branco não possui ações voltadas às pessoas com deficiência. Penso juntamente com o executivo e os demais membros do legislativo na implantação de uma Central Social, um local que possa dar o amparo de que tanto essas pessoas precisam. Por exemplo: a pessoa surda que deseja ingressar no mercado de trabalho... Se a empresa não possui um intérprete de Libras, o método de entrevista se torna algo excludente. O objetivo desta Central é bem esse, intermediar essa ação. Nós, como órgão público, disponibilizaremos esse profissional até o local para fazer a mediação e auxiliar nos anseios tanto da empresa quanto do profissional entrevistado. Veja que essa é apenas uma das ações da central”. 

Além disso, prossegue o vereador, “também teríamos oficinas, cursos profissionalizantes, socialização para pessoas que já não se encontram em idade escolar ou no mercado de trabalho”. Por fim, ele afirma ser necessário “rever a questão de infraestrutura municipal, a regulamentação de linhas táteis, semáforos sonoros, guias rebaixadas e afins”.

 

Acessibilidade

Em 2020, 1.158.405 eleitores declararam ter algum tipo de deficiência ou mobilidade reduzida. Para incluir essas pessoas, o TSE tem desenvolvido desde 2012 um Programa de Acessibilidade que busca remover gradualmente barreiras físicas, arquitetônicas, de comunicação e de atitudes, a fim de viabilizar uma inclusão mais ampla de pessoas com deficiência no processo eleitoral. 

A iniciativa foi premiada em 2019 pelo Zero Project, da ONU, na categoria “Melhores práticas e políticas inovadoras mundiais na área de vida independente e participação política de pessoas com deficiência”. Uma das inovações de 2020 foi que os eleitores com deficiência visual puderam ouvir o nome do candidato após digitar o número correspondente na urna eletrônica.

No exercício do mandato, por outro lado, os desafios permanecem, segundo relatos de nossos entrevistados. “A Câmara [de Pato Branco] é um prédio novo, porém não foi trabalhada a questão de acessibilidade. As rampas que existem foram adaptadas após a construção, não há linhas táteis, o elevador não possui sistema de voz”, revela Celestrin. 

Em Belém, a situação se repete. “A casa não oferece [condições adequadas]. Basta dizer que a mesa de onde dirijo os trabalhos do dia a dia é colocada num espaço num piso cima, com acesso através de escada. Isso impede que as pessoas com deficiência, com mobilidade reduzida, tenham acesso. Os elevadores são muito pequenos, nem sequer cabe uma cadeira de rodas. E os espaços ainda são cheios de obstáculos”, afirma Amaury. 

 

ABORDAGEM BIOPSICOSSOCIAL

A construção da sociedade inclusiva almejada por Celestrin, Amaury e os milhões de brasileiros que enfrentam desafios semelhantes aos deles depende de uma compreensão “biopsicossocial” da deficiência física. É o que sustenta Vicente Elísio de Oliveira, 52, promotor de justiça e doutor em ciências jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). “A deficiência somente pode ser reconhecida no movimento de interação da pessoa com o contexto social que a circunscreve”, explica Oliveira, que é cego desde criança.

À luz de sua atuação no Ministério Público do Rio Grande do Norte e de sua pesquisa de doutorado na UFPB, ele afirma que as políticas públicas devem ser construídas sempre levando em conta “as conexões entre os impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial vivenciados pelas pessoas e as barreiras presentes no ambiente físico e social que podem dificultar ou impedir a participação plena e efetiva dessas pessoas em igualdade de condições”. 

É essa, segundo Oliveira, a concepção vigente tanto no Direito Internacional quanto na Constituição brasileira de 1988. No entanto, a legislação ainda convive com compreensões mais antigas, que reduzem a deficiência à sua dimensão biomédica e, desse modo, tendem a marginalizar as pessoas com deficiência. 

“Ainda é forte a influência da compreensão biomédica da deficiência que historicamente inspirou nossas leis e políticas públicas. Tal concepção, que estabelece uma relação de causa e efeito entre doença, deficiência, incapacidade e desvantagens sociais, ou seja, converte em fato biológico uma construção predominantemente social, sustenta que as pessoas com deficiência são excluídas e marginalizadas do ambiente social em razão de um fato natural (doença congênita ou adquirida, crônica ou de longa duração). O inválido, o incapaz, o ineficiente deveria, segundo o pensamento biomédico, ser segregado em instituições especializadas como escolas e classes especiais, oficinas de trabalho ‘protegido’ etc.”, afirma Oliveira. 

O jurista cita como exemplo desse tipo de abordagem o Decreto 10.502/20, por meio do qual o governo federal instituiu a Política Nacional de Educação Especial. Questionada por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade sob o argumento de que estimula a exclusão via incentivo ao retorno das escolas e classes especiais para alunos com deficiência, a medida acabou suspensa pelo Supremo Tribunal Federal.

 

SOCIEDADE CIVIL

Antônio José Camargos Fortes, 58, nunca exerceu um mandato legislativo ou executivo, mas sempre foi um cidadão muito empenhado politicamente. Para ele, a luta pelos direitos das pessoas com deficiência se dá em espaços destinados à participação da sociedade civil. Natural e residente de Botucatu (SP), Gué, como é conhecido, tem paralisia cerebral leve e milita nesse campo desde a década de 1990. Após dirigir a Associação dos Deficientes Físicos de Botucatu (ADEFB), ajudou a criar e presidiu o Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência. Em 2009, tornou-se membro do Conselho Estadual análogo, função que ocupa até o presente momento.

Para Gué, é fundamental que as pessoas com deficiência ocupem todos os espaços possíveis. “Diante de uma reforma política, acredito que deveríamos ter percentual reservado para as pessoas com deficiência assim como para as mulheres e para todas as demais minorias. Não nos sentimos melhores do que ninguém, porém existe uma barreira muito grande no Brasil para alcançarmos a inclusão que nos é garantida por direito. E a participação da pessoa com deficiência nos espaços de poder é fundamental para conseguirmos esses avanços necessários”, argumenta.

Texto originalmente publicado pela Revista Cidade Nova, edição de fevereiro de 2021.


por Daniel Fassa

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